Nos últimos anos, o debate sobre o uso de canabinoides na psiquiatria tem ganhado força. Com a crescente legalização do uso medicinal da cannabis em diversos países, muitos se perguntam se essa substância pode ser eficaz no tratamento de transtornos psiquiátricos, como o autismo, a ansiedade e a depressão. Mas o que dizem as evidências científicas?
Para esclarecer essa questão, a Dra. Mariana Zaramela Lopes, psiquiatra e pesquisadora da Harvard Medical School, entrevistou o Dr. Marcelo Allevato, especialista na área. Durante a conversa, ele trouxe uma visão crítica sobre a aplicação clínica dos canabinoides e destacou a necessidade de cautela antes de incorporá-los como tratamento padrão.
O que a ciência diz sobre o uso de canabinoides na psiquiatria?
De acordo com o Dr. Allevato, até o momento, nenhuma agência reguladora ou associação psiquiátrica reconhece formalmente o uso de canabinoides para transtornos psiquiátricos. Isso significa que não há recomendações oficiais para prescrição dessa substância no tratamento de condições como ansiedade, depressão ou autismo.
Apesar da popularidade do tema, as evidências científicas ainda são inconclusivas. Há muitos relatos de casos e estudos observacionais sugerindo benefícios, mas ensaios clínicos randomizados – o padrão-ouro da ciência – são escassos.
O que se sabe, no entanto, é que os canabinoides têm indicações comprovadas em algumas condições neurológicas, como:
- Espasticidade na esclerose múltipla, com o uso de medicamentos como o Sativex (Nevatil no Brasil).
- Síndrome de Lennox-Gastaut e Síndrome de Dravet, ambas formas raras de epilepsia, para as quais o canabidiol puro (CBD) demonstrou eficácia.
Essas são condições para as quais o uso de derivados da cannabis tem respaldo científico e aprovação regulatória. No entanto, para transtornos psiquiátricos, o cenário é diferente.
Regulação e uso clínico: uma realidade diferente
Embora algumas agências flexibilizem o uso de canabinoides para condições específicas, o processo de prescrição é altamente regulamentado. Em países como Israel, por exemplo, um psiquiatra só pode prescrever canabinoides para autismo se tiver uma certificação em psiquiatria infantil. Além disso, o paciente precisa passar por uma série de avaliações médicas rigorosas, com a necessidade de renovação periódica da autorização para uso da substância.
O Ministério da Saúde de Israel, por exemplo, mantém um documento detalhado sobre o tema, acessível online. Nele, são especificadas as indicações aprovadas, os critérios para prescrição e os requisitos para acompanhamento dos pacientes. Esse nível de regulação reforça a importância da supervisão médica criteriosa antes de considerar o uso dos canabinoides na psiquiatria.
O que as evidências científicas realmente mostram?
Durante a entrevista, o Dr. Allevato destacou que, embora se fale muito sobre a eficácia da cannabis medicinal, a quantidade de estudos de alta qualidade na área psiquiátrica é surpreendentemente pequena.
Recentemente, um dos principais especialistas em neurologia infantil, o Dr. Adi Aran, publicou uma revisão de todos os estudos sobre canabinoides no autismo até 2024. O resultado? Apenas dois ensaios clínicos randomizados de boa qualidade foram encontrados:
- Um estudo conduzido pelo próprio Dr. Aran.
- Outro estudo realizado por um grupo brasileiro no Rio Grande do Norte.
Os resultados desses estudos são mistos. Em um deles, algumas medidas mostraram benefícios, enquanto no outro, os dados foram considerados insuficientes para uma conclusão definitiva.
Isso mostra que a crença de que “existem muitos estudos provando a eficácia dos canabinoides” pode ser equivocada. Muitas das publicações existentes são revisões baseadas nos mesmos poucos estudos originais, o que dá uma falsa impressão de volume de evidências.
Além disso, é importante lembrar que meta-análises e revisões sistemáticas – técnicas estatísticas que analisam múltiplos estudos – só têm valor quando os estudos primários são robustos. Se os dados originais são frágeis, a meta-análise não melhora sua confiabilidade.
Cautela no uso de canabinoides na psiquiatria
Um dos principais pontos levantados pelo Dr. Allevato é a necessidade de cautela. Ele enfatiza que, embora a ciência deva estar aberta a novas possibilidades terapêuticas, a adoção prematura de tratamentos sem embasamento pode ser perigosa.
No contexto da psiquiatria, a ansiedade por novas abordagens muitas vezes leva à disseminação de informações sem o devido rigor científico. Isso se reflete na popularização de certos tratamentos antes mesmo de sua eficácia ser comprovada.
O risco dessa prática é que pacientes podem ser expostos a tratamentos sem evidências suficientes, comprometendo sua segurança e bem-estar. Além disso, a promoção excessiva dos canabinoides pode induzir falsas expectativas e desviar o foco de terapias já estabelecidas e eficazes.
O próprio Dr. Allevato compartilhou sua surpresa ao descobrir a escassez de estudos clínicos sólidos sobre canabinoides no autismo, apesar da ampla divulgação do tema. Isso reforça a necessidade de mais pesquisas antes de adotar essas substâncias de maneira generalizada.
Conclusão: o que esperar do futuro?
O uso de canabinoides na psiquiatria ainda é um campo em desenvolvimento. Embora existam indícios de possíveis benefícios, a falta de estudos robustos impede que sejam recomendados como tratamento padrão para transtornos psiquiátricos.
Para que um medicamento seja amplamente aceito na prática clínica, é essencial que ele passe por rigorosos testes científicos que comprovem sua eficácia e segurança. Até que isso aconteça, a melhor abordagem é manter uma postura crítica e baseada em evidências.
O recado final do Dr. Allevato é claro: cautela e ciência devem andar lado a lado. O entusiasmo com novas terapias é válido, mas deve ser acompanhado por estudos rigorosos que garantam benefícios reais para os pacientes.
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